Práticas integrativas e
complementares, ou ‘alternativas’ como se costuma chamar, contam com política
específica do Ministério da Saúde e ampliam as possibilidades de cuidado
Elisa Batalha
Outras medicinas no SUS
Jaime Pedro Belo, de 42
anos, morador de Niterói, Rio de Janeiro, sofreu um acidente de moto em 2010,
passou por cirurgia no fêmur e teve seqüelas. Precisou fazer fisioterapia, mas
sofria com dores intensas. Foi encaminhado para a Policlínica de Especialidades
Dr. Sylvio Picanço, em Niterói, ligada a Fundação Municipal de Saúde, e vem
passando por sessões de eletroacupuntura uma vez por semana. Jaime ainda não
tinha ouvido falar do tratamento com agulhas, e confessa que estranhou a
indicação do ortopedista. “Já tinha tomado muitas injeções”, conta. “Sinto que
funcionou”, relatou ele, após a quinta sessão.
“Não dói nada”, garante
Marilene José Santana, que também faz eletroacupuntura na Policlínica. Ela teve
fibromialgia diagnosticada em 2008, fez tratamento com psiquiatra, ortopedista,
reumatologista e psicólogo, mas não conseguia mais trabalhar por causa da
doença. “Tomava remédios muito pesados”, diz. Foi também o ortopedista que a
encaminhou para a acupuntura. “Não sabia que podia fazer pelo SUS. Antes tinha
dor 24 horas. Vejo o tratamento como um milagre”, conta. Após sete sessões de eletroacupuntura,
suspendeu todos os remédios, exceto um relaxante muscular leve.
“A acupuntura funciona
modulando o sistema nervoso”, explica o médico responsável pelo tratamento de
Jaime e Marilene, Márcio Dias, que atua também na formação de profissionais no
curso de especialização em Acupuntura do Instituto de Saúde Coletiva da
Universidade Federal Fluminense (ISC/UFF). Sua prática é a acupuntura
neurofuncional, baseada no conhecimento anatômico e na Neurofisiologia, que
substitui com vantagens, afirma, a aplicação dessa abordagem sob o paradigma da
Medicina Tradicional Chinesa, prática de 2,5 mil anos. “Assim como o método
milenar, a prática contemporânea não deixa de ver o indivíduo como um todo,
seja para tratar dores osteomusculoarticulares agudas ou crônicas ou distúrbios
funcionais, que afetam os sistemas digestivo, circulatório, urinário”, observa
Márcio, contabilizando cerca de 350 atendimentos por mês no setor do SUS no
qual trabalha.
Assim como a
acupuntura, a homeopatia, o tratamento com plantas medicinais (fitoterapia) e
diversos outros recursos não alopáticos são tradicionalmente utilizados no
país. Ao longo de toda a vida, dificilmente algum de nós, brasileiros, não
ouviu falar, ou mesmo recorreu a pelo menos a um desses tratamentos denominados
genericamente como alternativos — termo que não faz jus ao potencial dessas
práticas que podem ser utilizadas como primeira opção de tratamento e não em
último caso, como apontam os profissionais e estudiosos da área.
Preconceito
e desconhecimento
Para o Ministério da
Saúde, são chamadas de práticas integrativas e complementares e dispõem de
política específica no Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de
Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), instituída em 2006 pelas
portarias ministeriais nº 971 e nº 1.600 e que busca atender "a
necessidade de se conhecer, apoiar, incorporar e implementar experiências que
já vêm sendo desenvolvidas na rede pública de muitos municípios e
estados", como diz o texto, mas ainda não estão amplamente difundidas e
têm abrangência limitada. Segundo o médico sanitarista Felipe Cavalcanti,
coordenador da Área Técnica de Práticas Integrativas e Complementares do
Ministério da Saúde, o número de serviços de Práticas Integrativas e
Complementares (PICs) vem sendo ampliado a cada ano por parte do ministério, e
hoje, segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos e Serviços de
Saúde (CNESS), existem quase 3,5 mil estabelecimentos que ofertam pelo menos
uma das práticas. Esses estabelecimentos estão distribuídos em 10% dos
municípios do Brasil, sendo que alcançam 90% das capitais brasileiras.
Felipe reconhece
entraves à expansão do acesso e insuficiência de uma linha de financiamento
para as PICs. “Há necessidade de superar o preconceito e desconhecimento sobre
as práticas. A formação de profissionais de saúde está centrada na
racionalidade biomédica e estimula preconceito contra outras racionalidades”,
considera.
“É preciso dar à
população o direito de saber que não existe uma só medicina”, afirma a médica e
ambientalista Maria Luiza Branco, participante fundadora da Associação
Terrapia, projeto vinculado à Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
(Ensp/Fiocruz), voltado à promoção da saúde por meio da alimentação viva,
baseada na mudança de hábitos alimentares e calcada em vegetais e grãos
germinados não cozidos. O fundamento dessa prática é, segundo ela, uma medicina
ecológica, “que propõe como terapia o reequilíbrio do corpo visto como um
ecossistema vivo”.
Aberração
Grande parte do
orçamento em saúde, aponta Maria Luiza, é gasta com a compra de medicamentos,
mas a medicina farmacológica não é a única. “São muitas medicinas. Não é
preciso ser excludente. Em cada momento da vida o cidadão deve poder escolher”,
analisa Maria Luiza, médica psiquiatra que descobriu a alimentação viva como
paciente. Há 17 anos, ela perdeu a visão de um dos olhos por problema
considerado irreversível, tinha outras patologias e decidiu buscar outras
formas de cuidado. Seis anos depois, conta, recuperou totalmente a visão. “As
medicinas tradicionais não dão conta de todas as questões de saúde”, considera
ela, para quem se está perdendo a visão do ser humano como um todo. “A medicina
natural ou integrativa não vê o indivíduo como máquina que teria um defeito — a
doença”, diz.
O médico homeopata
Hylton Sarcinelli Luz (ver entrevista na página 28) é ainda mais enfático.
“Vivemos uma aberração em termos democráticos”, declara. “Sistemas de cuidado
com milhares de anos de serviços à vida são negligenciados em nome de um
suposto domínio de um tipo de ciência. Mas, como ninguém percebe, fica tudo
como está”, analisa Hylton, idealizador e coordenador da campanha Democracia na
Saúde JÁ!, iniciada em 2006, e atuante no movimento que elaborou e propôs a
PNPIC. Para aqueles que têm poder econômico para comprar serviços, existem
escolhas de todos os tipos”, afirma.
Segundo Felipe
Cavalcanti, a PNPIC foi concebida a partir das diretrizes e recomendações de
várias conferências nacionais de Saúde e das recomendações da Organização
Mundial da Saúde (OMS), tendo um primeiro grupo de trabalho sido montado em
2002. Em fevereiro de 2006, o documento final da política foi aprovado por
unanimidade pelo Conselho Nacional de Saúde. O documento inclui textualmente a
homeopatia, a medicina tradicional chinesa (que engloba a acupuntura), a
fitoterapia, os tratamentos com águas termais e minerais e a menos conhecida
medicina antroposófica (que associa os aspectos físicos aos aspectos anímicos e
espirituais).
Para a médica homeopata
e sanitarista Gíssia Gomes Galvão, coordenadora da Especialização em Saúde
Pública da Ensp/Fiocruz, também participante do movimento que deu origem à
PNPIC, as práticas integrativas têm muito a colaborar com a integralidade e com
a qualidade de vida e estão, assim, sintonizadas com os princípios do SUS.
Prática
contra-hegemônica
Atendendo regularmente
há 27 anos como homeopata no Centro de Saúde Germano Sinval Filho da Ensp,
Gíssia aponta problemas como dificuldade de contratação de pessoas para a área.
Ela vê um desconhecimento por parte dos gestores em relação à potencialidade
dessas práticas no cuidado com as pessoas. “É preciso uma retomada. O que daria
uma boa sustentabilidade para a política seria o apoio da população. É uma
prática contra-hegemônica”.
Menos remédio
representa, para Gíssia, mais saúde. “Considero um elogio um paciente me dizer
que passou a gastar menos com medicamentos para asma, por exemplo, e demorar a
retornar a uma consulta. É sinal de que está bem”. Para ela, o acesso a esse
tipo de atendimento não deveria se dar só a partir de encaminhamentos, que é o
que ocorre na realidade. “Brigamos pela política com livre acesso a essas
práticas, para pessoas de qualquer idade, com qualquer patologia”, entende ela,
para quem a homeopatia não precisa ser
complementar.
O SUS, analisa Gíssia,
“por mais avançado que seja, está voltado para uma racionalidade, a da medicina
tradicional”. Essa racionalidade relaciona-se a uma lógica de caráter quantitativo,
que não se aplica às práticas integrativas. “Um homeopata não leva menos de uma
hora em uma consulta de primeira vez. Então, ele atende um número menor de
pacientes do que um clínico geral. Mas os resultados mostram grande
resolutividade. As pessoas tendem a espaçar mais as consultas e a utilizar
menos os serviços de emergência”, aponta.
Outra
avaliação
Em sua tese de
doutorado Medicinas Tradicionais alternativas e complementares e sua
estruturação na atenção primária: uma reflexão sobre o cuidado e sua avaliação,
defendida em maio na Ensp/Fiocruz, a enfermeira Islândia Maria de Carvalho
Sousa, pesquisadora da Fiocruz Pernambuco, defende que, apesar dos avanços com
a instituição da PNPIC, é difícil medir ao certo o que é realmente praticado, visto
que as lógicas de avaliação foram construídas para o sistema biomédico. “Há
dificuldade em avaliar o que é registrado como MAC”, diz ela, referindo-se à
sigla formada pelas iniciais de medicinas alternativas e complementares, da
qual se utiliza em sua pesquisa. “No Brasil, as MACs foram identificadas como
práticas integrativas e complementares, PICs. São usadas como sinônimos”,
explica.
Islândia aponta que há
limites nos próprios sistemas de informação em captar o que tem sido ofertado
como MAC nos contextos locais, havendo descompasso entre o que é realizado no
cotidiano e o que é informado. Caracterizar o que são essas práticas,
considera, é um desafio. “Podemos dizer que todas as que objetivam estimular os
mecanismos naturais de cuidado e cura e a ideia de que a doença envolve
corpo/mente/espírito como uma unidade e estão fora do modelo biomédico são
tidas como medicinas alternativas e complementares. Assim, para outra maneira
de cuidado é necessária outra lógica de avaliação”, define.
De acordo com Islândia,
apesar do limitado financiamento federal, as práticas integrativas continuam a
crescer no SUS, fruto do pioneirismo
e força de vontade de muitos profissionais de saúde, muitas vezes com pouco
apoio da gestão. A porta de entrada do usuário nesses tipos de serviço também
não é padronizada, segundo a pesquisadora. “De modo geral, hoje, são arranjos
locais que determinam como as medicinas alternativas entram na rede, e é
bastante diversificada sua oferta e organização”, explica. Islândia estudou
ainda a experiência da Unidade de Cuidados Integrais à Saúde (UCIS) Guilherme
Abath, que oferece tratamentos da medicina tradicional chinesa, além de outras
atividades e atua junto às equipes de saúde da família na rede municipal do
Recife. “Funciona como referência para as medicinas alternativas”, resume.
Arsenal
de possibilidades
O médico Adalberto
Barreto, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), criador da Terapia
Comunitária (Radis 67), concorda que é
preciso universalizar, socializar e enriquecer o arsenal de possibilidades e diversificar
as intervenções terapêuticas. Para ele, que é idealizador do Projeto 4 Varas,
voltado a essa prática, é preciso ainda abordar o aspecto não só da cura e do
tratamento, mas do acolhimento ao sofrimento humano. “Muitas práticas
complementares focam a atenção no acolhimento do sofrimento, na dor da alma,
permitindo que as pessoas possam digerir uma ansiedade que se não for
metabolizada traz grandes riscos para a saúde. É melhor promover a saúde hoje,
pelo reforço dos vínculos sociais e pela integração de saberes, do que combater
a patologia amanhã nos hospitais”, afirma. “O cenário brasileiro já esta
amadurecido. As leis já foram sancionadas, falta uma política de expansão, não
para se opor aos modelos clássicos e sim para enriquecê-los, diversificá-los”,
completa.
Crise
cultural
Para o médico Eduardo
Almeida, doutor em Saúde Coletiva e professor do Instituto de Saúde da
Comunidade da Universidade Federal Fluminense (UFF), o SUS tem dificuldade em
efetivar as PICS por trabalhar, na prática, quase exclusivamente com o modelo
intervencionista da medicina lesional. “Há uma medicina que é dominante. As
outras são vistas como exóticas e esotéricas”. Segundo ele, isso faz parte da
insuficiência cultural no campo médico, uma vez que qualquer medicina é na
essência um sistema cultural, onde não deveria haver “superioridade cultural”.
Autor de As razões da terapêutica — Racionalismo e empirismo na medicina e O
elo perdido da medicina — O afastamento da noção de vida e natureza, Eduardo,
adepto da Medicina Funcional, considera que não tem havido suporte
institucional para a PNPIC. “Assim fica como fogo de palha, e depende de
iniciativas individuais”, afirma.
Ele considera a
expansão das PICs essencial, uma vez que a medicina alopática vive uma profunda
crise cultural. Eduardo explica que a medicina oficial nasceu no século 19,
desafiada pelas doenças bacterianas agudas, com a afirmação da Teoria do Germe
de Pasteur, Koch e Ehrlich. É essa noção de adoecimento que irá definir todo o
alcance da doutrina médica oficial (medicina localista-lesional, monocausal,
intervencionista, usuária exclusiva da química de patente).
Para o pesquisador, a
realidade do adoecimento atual é marcada pelas doenças crônicas, que são
doenças sistêmicas, inicialmente não-lesionais (funcionais), que afetam vários
sistemas e funções do organismo. “Como uma medicina que nasce para dar conta da
doença aguda pode entender o adoecimento crônico? Como uma medicina que concebe
que o organismo adoece por partes pode dar conta da doença sistêmica?”,
questiona. Esses são alguns dos paradoxos do que ele classifica como “crise
cultural da medicina”. “É importante que o SUS insira e se aproprie dessa
mudança de paradigma trazida pela visão funcional. O sistema de saúde
convencional está em crise de custos em todo o mundo. Não há caixa para assegurar
o custo dessa medicina calcada na tecnologia. São abertos grandes centros
tecnológicos, mas isso não resolve, porque não há intervenção no processo que
leva por exemplo às degenerações”, diz.
Ele observa que a
medicina oficial só atua depois que o tecido está lesado. “Veja o caso da
degeneração articular (artrose). Espera-se que a pessoa lese gravemente a
articulação para se colocar a prótese. Ninguém aparece para o grande público
para dizer como preservar suas articulações, pois a medicina oficial tem muito
pouco a dizer sobre isso. Então assistimos as filas do INTO. Entra-se na fila
da prótese, mas não se aborda a dinâmica dos desgastes que levam a degeneração
da articulação”, exemplifica. Eduardo argumenta que a medicina deveria
responder como se dá o processo crônico degenerativo, em termos clínicos, que
produz quase 90% do adoecimento atual. “Se o médico não sabe isso, ele não está
equipado para abordar a realidade do adoecimento atual. Daí defendo que devemos
superar o bloqueio cognitivo da medicina lesional (oficial). Por isso, critico
o discurso da complementariedade, pois se parte do princípio de que a medicina
oficial é o núcleo central do conhecimento médico e os outros sistemas no
máximo podem complementá-la. Isso é um equívoco”, adverte.
Formação
integral
O professor argumenta
que é preciso superar os limites impostos pelo paradigma quimicomecanicista na
medicina, que data do século 19. Em sua opinião, na medida que avança o
conhecimento humano, a medicina deveria também avançar, e a incorporação
tecnológica pela medicina tem ofuscado sua crise cultural e de paradigma.
Eduardo Almeida criou e dirigiu por 15 anos a Unidade Docente do Posto de
Saúde, voltada para a formação em medicina geral e comunitária, na localidade
do Caramujo, em Niterói, Rio de Janeiro. Lá, segundo ele, 85% das pessoas
recebiam tratamento com medicina não alopática. Em geral, observa, clínicos e
especialistas têm formação e mentalidade hospitalar e não uma formação que
contemple o atendimento integral ao ser humano. “Atendimento de saúde se dá
através de recursos humanos e não de tecnologia”, critica. “Hoje, formam-se
médicos especialistas, alopatas, intervencionistas, prescritores intensivos de
medicamentos e de exames complementares; não se fala mais da arte médica. A quem
interessa esse sistema?”, questiona.
http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/130/reportagens/outras-medicinas-no-sus
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