sábado, 27 de setembro de 2014

ACUPUNTURA NO SUS



Práticas integrativas e complementares, ou ‘alternativas’ como se costuma chamar, contam com política específica do Ministério da Saúde e ampliam as possibilidades de cuidado
Elisa Batalha

Outras medicinas no SUS

Jaime Pedro Belo, de 42 anos, morador de Niterói, Rio de Janeiro, sofreu um acidente de moto em 2010, passou por cirurgia no fêmur e teve seqüelas. Precisou fazer fisioterapia, mas sofria com dores intensas. Foi encaminhado para a Policlínica de Especialidades Dr. Sylvio Picanço, em Niterói, ligada a Fundação Municipal de Saúde, e vem passando por sessões de eletroacupuntura uma vez por semana. Jaime ainda não tinha ouvido falar do tratamento com agulhas, e confessa que estranhou a indicação do ortopedista. “Já tinha tomado muitas injeções”, conta. “Sinto que funcionou”, relatou ele, após a quinta sessão.
“Não dói nada”, garante Marilene José Santana, que também faz eletroacupuntura na Policlínica. Ela teve fibromialgia diagnosticada em 2008, fez tratamento com psiquiatra, ortopedista, reumatologista e psicólogo, mas não conseguia mais trabalhar por causa da doença. “Tomava remédios muito pesados”, diz. Foi também o ortopedista que a encaminhou para a acupuntura. “Não sabia que podia fazer pelo SUS. Antes tinha dor 24 horas. Vejo o tratamento como um milagre”, conta.  Após sete sessões de eletroacupuntura, suspendeu todos os remédios, exceto um relaxante muscular leve. 
“A acupuntura funciona modulando o sistema nervoso”, explica o médico responsável pelo tratamento de Jaime e Marilene, Márcio Dias, que atua também na formação de profissionais no curso de especialização em Acupuntura do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense (ISC/UFF). Sua prática é a acupuntura neurofuncional, baseada no conhecimento anatômico e na Neurofisiologia, que substitui com vantagens, afirma, a aplicação dessa abordagem sob o paradigma da Medicina Tradicional Chinesa, prática de 2,5 mil anos. “Assim como o método milenar, a prática contemporânea não deixa de ver o indivíduo como um todo, seja para tratar dores osteomusculoarticulares agudas ou crônicas ou distúrbios funcionais, que afetam os sistemas digestivo, circulatório, urinário”, observa Márcio, contabilizando cerca de 350 atendimentos por mês no setor do SUS no qual trabalha.
Assim como a acupuntura, a homeopatia, o tratamento com plantas medicinais (fitoterapia) e diversos outros recursos não alopáticos são tradicionalmente utilizados no país. Ao longo de toda a vida, dificilmente algum de nós, brasileiros, não ouviu falar, ou mesmo recorreu a pelo menos a um desses tratamentos denominados genericamente como alternativos — termo que não faz jus ao potencial dessas práticas que podem ser utilizadas como primeira opção de tratamento e não em último caso, como apontam os profissionais e estudiosos da área.
Preconceito e desconhecimento
Para o Ministério da Saúde, são chamadas de práticas integrativas e complementares e dispõem de política específica no Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), instituída em 2006 pelas portarias ministeriais nº 971 e nº 1.600 e que busca atender "a necessidade de se conhecer, apoiar, incorporar e implementar experiências que já vêm sendo desenvolvidas na rede pública de muitos municípios e estados", como diz o texto, mas ainda não estão amplamente difundidas e têm abrangência limitada. Segundo o médico sanitarista Felipe Cavalcanti, coordenador da Área Técnica de Práticas Integrativas e Complementares do Ministério da Saúde, o número de serviços de Práticas Integrativas e Complementares (PICs) vem sendo ampliado a cada ano por parte do ministério, e hoje, segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos e Serviços de Saúde (CNESS), existem quase 3,5 mil estabelecimentos que ofertam pelo menos uma das práticas. Esses estabelecimentos estão distribuídos em 10% dos municípios do Brasil, sendo que alcançam 90% das capitais brasileiras.
Felipe reconhece entraves à expansão do acesso e insuficiência de uma linha de financiamento para as PICs. “Há necessidade de superar o preconceito e desconhecimento sobre as práticas. A formação de profissionais de saúde está centrada na racionalidade biomédica e estimula preconceito contra outras racionalidades”, considera. 
“É preciso dar à população o direito de saber que não existe uma só medicina”, afirma a médica e ambientalista Maria Luiza Branco, participante fundadora da Associação Terrapia, projeto vinculado à Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), voltado à promoção da saúde por meio da alimentação viva, baseada na mudança de hábitos alimentares e calcada em vegetais e grãos germinados não cozidos. O fundamento dessa prática é, segundo ela, uma medicina ecológica, “que propõe como terapia o reequilíbrio do corpo visto como um ecossistema vivo”.
Aberração
Grande parte do orçamento em saúde, aponta Maria Luiza, é gasta com a compra de medicamentos, mas a medicina farmacológica não é a única. “São muitas medicinas. Não é preciso ser excludente. Em cada momento da vida o cidadão deve poder escolher”, analisa Maria Luiza, médica psiquiatra que descobriu a alimentação viva como paciente. Há 17 anos, ela perdeu a visão de um dos olhos por problema considerado irreversível, tinha outras patologias e decidiu buscar outras formas de cuidado. Seis anos depois, conta, recuperou totalmente a visão. “As medicinas tradicionais não dão conta de todas as questões de saúde”, considera ela, para quem se está perdendo a visão do ser humano como um todo. “A medicina natural ou integrativa não vê o indivíduo como máquina que teria um defeito — a doença”, diz.
O médico homeopata Hylton Sarcinelli Luz (ver entrevista na página 28) é ainda mais enfático. “Vivemos uma aberração em termos democráticos”, declara. “Sistemas de cuidado com milhares de anos de serviços à vida são negligenciados em nome de um suposto domínio de um tipo de ciência. Mas, como ninguém percebe, fica tudo como está”, analisa Hylton, idealizador e coordenador da campanha Democracia na Saúde JÁ!, iniciada em 2006, e atuante no movimento que elaborou e propôs a PNPIC. Para aqueles que têm poder econômico para comprar serviços, existem escolhas de todos os tipos”, afirma.
Segundo Felipe Cavalcanti, a PNPIC foi concebida a partir das diretrizes e recomendações de várias conferências nacionais de Saúde e das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), tendo um primeiro grupo de trabalho sido montado em 2002. Em fevereiro de 2006, o documento final da política foi aprovado por unanimidade pelo Conselho Nacional de Saúde. O documento inclui textualmente a homeopatia, a medicina tradicional chinesa (que engloba a acupuntura), a fitoterapia, os tratamentos com águas termais e minerais e a menos conhecida medicina antroposófica (que associa os aspectos físicos aos aspectos anímicos e espirituais).
Para a médica homeopata e sanitarista Gíssia Gomes Galvão, coordenadora da Especialização em Saúde Pública da Ensp/Fiocruz, também participante do movimento que deu origem à PNPIC, as práticas integrativas têm muito a colaborar com a integralidade e com a qualidade de vida e estão, assim, sintonizadas com os princípios do SUS.
Prática contra-hegemônica
Atendendo regularmente há 27 anos como homeopata no Centro de Saúde Germano Sinval Filho da Ensp, Gíssia aponta problemas como dificuldade de contratação de pessoas para a área. Ela vê um desconhecimento por parte dos gestores em relação à potencialidade dessas práticas no cuidado com as pessoas. “É preciso uma retomada. O que daria uma boa sustentabilidade para a política seria o apoio da população. É uma prática contra-hegemônica”.
Menos remédio representa, para Gíssia, mais saúde. “Considero um elogio um paciente me dizer que passou a gastar menos com medicamentos para asma, por exemplo, e demorar a retornar a uma consulta. É sinal de que está bem”. Para ela, o acesso a esse tipo de atendimento não deveria se dar só a partir de encaminhamentos, que é o que ocorre na realidade. “Brigamos pela política com livre acesso a essas práticas, para pessoas de qualquer idade, com qualquer patologia”, entende ela, para quem  a homeopatia não precisa ser complementar.
O SUS, analisa Gíssia, “por mais avançado que seja, está voltado para uma racionalidade, a da medicina tradicional”. Essa racionalidade relaciona-se a uma lógica de caráter quantitativo, que não se aplica às práticas integrativas. “Um homeopata não leva menos de uma hora em uma consulta de primeira vez. Então, ele atende um número menor de pacientes do que um clínico geral. Mas os resultados mostram grande resolutividade. As pessoas tendem a espaçar mais as consultas e a utilizar menos os serviços de emergência”, aponta.
Outra avaliação
Em sua tese de doutorado Medicinas Tradicionais alternativas e complementares e sua estruturação na atenção primária: uma reflexão sobre o cuidado e sua avaliação, defendida em maio na Ensp/Fiocruz, a enfermeira Islândia Maria de Carvalho Sousa, pesquisadora da Fiocruz Pernambuco, defende que, apesar dos avanços com a instituição da PNPIC, é difícil medir ao certo o que é realmente praticado, visto que as lógicas de avaliação foram construídas para o sistema biomédico. “Há dificuldade em avaliar o que é registrado como MAC”, diz ela, referindo-se à sigla formada pelas iniciais de medicinas alternativas e complementares, da qual se utiliza em sua pesquisa. “No Brasil, as MACs foram identificadas como práticas integrativas e complementares, PICs. São usadas como sinônimos”, explica.
Islândia aponta que há limites nos próprios sistemas de informação em captar o que tem sido ofertado como MAC nos contextos locais, havendo descompasso entre o que é realizado no cotidiano e o que é informado. Caracterizar o que são essas práticas, considera, é um desafio. “Podemos dizer que todas as que objetivam estimular os mecanismos naturais de cuidado e cura e a ideia de que a doença envolve corpo/mente/espírito como uma unidade e estão fora do modelo biomédico são tidas como medicinas alternativas e complementares. Assim, para outra maneira de cuidado é necessária outra lógica de avaliação”, define.
De acordo com Islândia, apesar do limitado financiamento federal, as práticas integrativas continuam a crescer no SUS, fruto do pioneirismo e força de vontade de muitos profissionais de saúde, muitas vezes com pouco apoio da gestão. A porta de entrada do usuário nesses tipos de serviço também não é padronizada, segundo a pesquisadora. “De modo geral, hoje, são arranjos locais que determinam como as medicinas alternativas entram na rede, e é bastante diversificada sua oferta e organização”, explica. Islândia estudou ainda a experiência da Unidade de Cuidados Integrais à Saúde (UCIS) Guilherme Abath, que oferece tratamentos da medicina tradicional chinesa, além de outras atividades e atua junto às equipes de saúde da família na rede municipal do Recife. “Funciona como referência para as medicinas alternativas”, resume.
Arsenal de possibilidades
O médico Adalberto Barreto, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), criador da Terapia Comunitária (Radis 67),  concorda que é preciso universalizar, socializar e enriquecer o arsenal de possibilidades e diversificar as intervenções terapêuticas. Para ele, que é idealizador do Projeto 4 Varas, voltado a essa prática, é preciso ainda abordar o aspecto não só da cura e do tratamento, mas do acolhimento ao sofrimento humano. “Muitas práticas complementares focam a atenção no acolhimento do sofrimento, na dor da alma, permitindo que as pessoas possam digerir uma ansiedade que se não for metabolizada traz grandes riscos para a saúde. É melhor promover a saúde hoje, pelo reforço dos vínculos sociais e pela integração de saberes, do que combater a patologia amanhã nos hospitais”, afirma. “O cenário brasileiro já esta amadurecido. As leis já foram sancionadas, falta uma política de expansão, não para se opor aos modelos clássicos e sim para enriquecê-los, diversificá-los”, completa.
Crise cultural
Para o médico Eduardo Almeida, doutor em Saúde Coletiva e professor do Instituto de Saúde da Comunidade da Universidade Federal Fluminense (UFF), o SUS tem dificuldade em efetivar as PICS por trabalhar, na prática, quase exclusivamente com o modelo intervencionista da medicina lesional. “Há uma medicina que é dominante. As outras são vistas como exóticas e esotéricas”. Segundo ele, isso faz parte da insuficiência cultural no campo médico, uma vez que qualquer medicina é na essência um sistema cultural, onde não deveria haver “superioridade cultural”. Autor de As razões da terapêutica — Racionalismo e empirismo na medicina e O elo perdido da medicina — O afastamento da noção de vida e natureza, Eduardo, adepto da Medicina Funcional, considera que não tem havido suporte institucional para a PNPIC. “Assim fica como fogo de palha, e depende de iniciativas individuais”, afirma.
Ele considera a expansão das PICs essencial, uma vez que a medicina alopática vive uma profunda crise cultural. Eduardo explica que a medicina oficial nasceu no século 19, desafiada pelas doenças bacterianas agudas, com a afirmação da Teoria do Germe de Pasteur, Koch e Ehrlich. É essa noção de adoecimento que irá definir todo o alcance da doutrina médica oficial (medicina localista-lesional, monocausal, intervencionista, usuária exclusiva da química de patente).
Para o pesquisador, a realidade do adoecimento atual é marcada pelas doenças crônicas, que são doenças sistêmicas, inicialmente não-lesionais (funcionais), que afetam vários sistemas e funções do organismo. “Como uma medicina que nasce para dar conta da doença aguda pode entender o adoecimento crônico? Como uma medicina que concebe que o organismo adoece por partes pode dar conta da doença sistêmica?”, questiona. Esses são alguns dos paradoxos do que ele classifica como “crise cultural da medicina”. “É importante que o SUS insira e se aproprie dessa mudança de paradigma trazida pela visão funcional. O sistema de saúde convencional está em crise de custos em todo o mundo. Não há caixa para assegurar o custo dessa medicina calcada na tecnologia. São abertos grandes centros tecnológicos, mas isso não resolve, porque não há intervenção no processo que leva por exemplo às degenerações”, diz.
Ele observa que a medicina oficial só atua depois que o tecido está lesado. “Veja o caso da degeneração articular (artrose). Espera-se que a pessoa lese gravemente a articulação para se colocar a prótese. Ninguém aparece para o grande público para dizer como preservar suas articulações, pois a medicina oficial tem muito pouco a dizer sobre isso. Então assistimos as filas do INTO. Entra-se na fila da prótese, mas não se aborda a dinâmica dos desgastes que levam a degeneração da articulação”, exemplifica. Eduardo argumenta que a medicina deveria responder como se dá o processo crônico degenerativo, em termos clínicos, que produz quase 90% do adoecimento atual. “Se o médico não sabe isso, ele não está equipado para abordar a realidade do adoecimento atual. Daí defendo que devemos superar o bloqueio cognitivo da medicina lesional (oficial). Por isso, critico o discurso da complementariedade, pois se parte do princípio de que a medicina oficial é o núcleo central do conhecimento médico e os outros sistemas no máximo podem complementá-la. Isso é um equívoco”, adverte.
Formação integral
O professor argumenta que é preciso superar os limites impostos pelo paradigma quimicomecanicista na medicina, que data do século 19. Em sua opinião, na medida que avança o conhecimento humano, a medicina deveria também avançar, e a incorporação tecnológica pela medicina tem ofuscado sua crise cultural e de paradigma. Eduardo Almeida criou e dirigiu por 15 anos a Unidade Docente do Posto de Saúde, voltada para a formação em medicina geral e comunitária, na localidade do Caramujo, em Niterói, Rio de Janeiro. Lá, segundo ele, 85% das pessoas recebiam tratamento com medicina não alopática. Em geral, observa, clínicos e especialistas têm formação e mentalidade hospitalar e não uma formação que contemple o atendimento integral ao ser humano. “Atendimento de saúde se dá através de recursos humanos e não de tecnologia”, critica. “Hoje, formam-se médicos especialistas, alopatas, intervencionistas, prescritores intensivos de medicamentos e de exames complementares; não se fala mais da arte médica. A quem interessa esse sistema?”, questiona.
http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/130/reportagens/outras-medicinas-no-sus

Nenhum comentário: